Os kenningar e a inovação

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Imagem da saga de Olaf

Quando Jorge Luís Borges escreveu seu pequeno manual histórico das literaturas medievais de origens germânicas[1] (aqui entendidas como a literatura escrita a partir de línguas descendentes do gótico, ou seja, a língua dos godos), ele posicionou as sagas islandesas como a grande referência em prosa daquele período.

Uma das características típicas dessas sagas era o uso de uma figura de linguagem, perífrase, para referir a outras palavras, o kenning. As histórias não citavam as espadas dos guerreiros, dentre muitos termos possíveis, elas poderiam aparecer como “vara da ira”, “galhos das feridas” ou “remo de sangue”.

Uma delas é “o senhor dos anéis”, o kenning para designar um rei.

O que Tolkien tem a ver com isso?

Ao escrever sua obra monumental, não coincidentemente, chamada “O senhor dos anéis”[2], Tolkien não partiu do nada.

Sua obra faz referência a muitas das estruturas dessas sagas. Não se esqueça que, afinal das contas, Tolkien escreveu numa língua de origem germânica, o inglês descende do anglo-saxão, que descende do gótico.

Não por acaso, também, seu herói se chama Frodo. No poema nórdico Grottasöngr, o herói é Frodo, filho de Fridlevo, que se tornou o mais poderoso de todos os reis nas terras setentrionais. Mas o rei de Tolkien não é Frodo, e sim Aragorn.

Isso não significa que a saga de Tolkien não seja criativa, original e inovadora, a ponto de ter se tornado, ela mesmo, a grande referência da literatura fantástica e amealhar legiões de fãs e seguidores.

Sobre os ombros de gigantes

Quando Isaac Newton falou que “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes[3] , ele também não estava sendo original.

A metáfora dos anões estarem sobre ombros de gigantes (em latim: nanos gigantum humeris insidentes) expressa o significado de descobrir a verdade a partir das descobertas anteriores. Esse conceito tem origem no século XII, e é atribuído a Bernardo de Chartres[4]

Não faz sentido dizer que Newton não tenha sido um inovador quando desenvolveu sua lei da gravitação universal ou as leis da mecânica clássica.

Newton construiu o primeiro telescópio refletor operacional e desenvolveu a teoria das cores baseada na observação que um prisma decompõe a luz branca em várias cores do espectro visível. Ele também formulou uma lei empírica de resfriamento e estudou a velocidade do som.

Além de seu trabalho em cálculo infinitesimal, como matemático Newton contribuiu para o estudo das séries de potências, generalizou o teorema binomial para expoentes não inteiros, e desenvolveu o método de Newton para a aproximação das raízes de uma função

Foi um gigante e, sobre os seus ombros, tantas outras descobertas e invenções inovadoras foram construídas.

O mito da inovação ex-nihilo

“O princípio que tomaremos como base é o de que nada pode ser criado a partir do nada”[5]

Quando acompanhamos o mundo dos inovadores contemporâneos, nos deparamos com uma visão deturpada (nem sempre por culpa desses mesmos inovadores), de que toda inovação é uma invenção genial que surge do nada, como se fosse possível tirar da cartola ideias de produtos e serviços absolutamente inusitados.

Essa visão, ou a falta dela, transforma a figura do inovador em um “deus” ou semideus que está acima dos demais seres humanos que não tem essa mesma capacidade de criar a partir do nada.

Nós, pobres mortais, somos os antiquados, conservadores, retrógrados e reacionários. Apegados ao passado, resistentes à mudança e tantos outros adjetivos desqualificativos que possam caber nesse contexto.

Eles, moradores do Olimpo disruptivo, são os únicos que podem levar o mundo, especialmente o mundo dos negócios, para o futuro. Não é à toa que alguns se auto denominam futuristas.

E o futuro se torna monopólio de algumas cabeças premiadas.

Quem são os verdadeiros inovadores?

A maioria dos inovadores de verdade não costuma usar esse rótulo em seus currículos. Estão mais preocupados em identificar oportunidades para os seus negócios do que em promover seu ego.

Eles sabem que o sucesso não está na capa das revistas especializadas, mas nos resultados que podem gerar. Preferem usufruir seus lucros a receber tapinhas nas costas.

Além disso, não são pessoas exclusivamente atentas ao presente e ao futuro, mas tem conhecimentos sólidos sobre o passado.

Conhecem os conceitos fundamentais sobre o que estão trabalhando. Aprendem a teoria que os permitam repensar as práticas. Estudam a história dos acertos e erros dos gigantes sobre os quais estão se apoiando. Analisam detalhadamente os processos que, afinal das contas, é o que dará consistência a seus projetos.[6]

Além disso: “são pessoas que têm dois fatores de inteligência como requisitos para inovar: curiosidade e bom humor”[7], que segundo os estudiosos da mente humana, podem ser desenvolvidos em qualquer pessoa.

Não podemos esquecer que algumas das grandes inovações da humanidade surgiram por acidente, as irmãs Tatin[8] que o digam.

De qualquer forma eu não recomendaria a ninguém esperar que a inovação caia do céu como um raio lançado por Odin[9], a probabilidade disto acontecer cabe apenas nos cálculos infinitesimais de Newton.

O que é indispensável?[10]

Em que pesem algumas questões diretamente relacionadas à inovação, existem pré-requisitos que norteiam a gestão como um todo e tornam-se ainda mais importantes para a geração de novas soluções.

A capacidade de ir além do que foi autorizado, que permite o questionamento e a ruptura dos padrões historicamente estabelecidos no modelo de negócio, a geração de ideias de vanguarda.

A busca por novos conhecimentos movida por uma curiosidade inesgotável em se aprofundar e buscar informações que ampliem a aprendizagem, bem como o exercício de estabelecer conexões entre informações dispersas e questionar as ideias e práticas.

Do ponto de vista pessoal e lembrando que nem tudo vai funcionar perfeitamente na primeira tentativa (muitas vezes nem na segunda ou terceira): determinação e persistência. Responder, de forma pragmática, a situações de extrema adversidade ou estresse agudo observado ao longo da vida

Como desenvolver a capacidade inovadora?

Inovar é um processo e, como tal, pode ser aprendido por qualquer pessoa que queira se dedicar a ele. Não é uma capacidade inata e, diferentemente do que muitos pensam, não depende do modelo evolutivo darwiniano.

Existem muitos modelos de ensino e de aprendizagem de inovação, não vou me ater a nenhum específico, apenas pontuar algumas características que considero imprescindíveis em todos.

  1. Dedicação a seu modelo de negócios[11]: estude detalhadamente o contexto em que você está inserido. Pesquise suas origens, seu desenvolvimento, suas técnicas e ferramentas.
  2. Conhecimento das partes envolvidas que gravitam em torno desse negócio. Analise o ecossistema do seu mercado, use as ferramentas de análise desse ecossistema. No mínimo, aprenda como aplicar o modelo de Porter[12], um dos gigantes do assunto.
  3. Estude os seus mercados: diferentemente do lugar comum, o maior direcionador da inovação não é a tecnologia, mas as necessidades, insatisfações e componentes que provocam a erosão de valor nos consumidores de qualquer produto ou serviço.[13]
  4. Acompanhe as mudanças: informe-se, estude e preste atenção nas mudanças que já aconteceram no passado recente e aquelas que estão em curso. Você não precisa ser um cientista de dados ou desenvolvedor das linguagens de programação para perceber o impacto de big data, de inteligência artificial e da internet das coisas no seu contexto.
  5. Nem toda mudança é tecnológica: as pessoas, as comunidades e a sociedade estão continuamente em transformação. Dedique uma parte do seu tempo a ler sobre sociologia, psicologia, comportamento. Exercite fazer conexões entre a realidade e essas leituras.
  6. Exercite a ligação entre diferentes campos associativos. A criatividade é o processo da inteligência humana de fazer conexões entre campos associativos diversos[14]. Não limite sua busca de conhecimento à sua área de especialização. Se fizer isso você pode ser substituído por uma máquina.
  7. Apoie-se nos ombros de gigantes: a começar pelos gigantes que estudaram os processos de inovação. Leia Schumpeter[15]. De forma alguma despreze os artigos e livros do Christensen[16] . E, claro, os gigantes da sua área de atuação.

A saga está apenas começando

A partir desse ponto começa a sua própria história como inovador. O enredo dessa saga está nas suas mãos (e na sua cabeça).

Se vai ser algo disruptivo que mude a história, um livro que impacte uma categoria literária ou uma receita de torta prosaica que pode gerar muito lucro, só o futuro dirá. Eu não sou um futurista para determinar o que vai acontecer.

© Fábio Adiron 2020

Agradecimentos:

Além das preciosas intervenções de Henrique Donnabella e Marcos da Cunha Ribeiro, citadas durante o texto, gostaria de agradecer as sempre preciosas observações de Eduardo Ramalho, Virginia Susana Fantoni, César Taurion, Robson Henriques. E ao Renato Paz pela frase que roubei dele.

Notas de rodapé

Apesar desse artigo não ser um texto acadêmico e ter recebido questionamentos sobre a manutenção delas, preferi mantê-las, especialmente como forma de tributo e reconhecimento às minhas fontes.


[1] BORGES, Jorge L. Literaturas Germánicas Medievales, Buenos Aires. Emecê Editores. 1978

[2] TOLKIEN, J.R.R. The lord of the rings. Londres. Unwyn Hyman. 1968

[3]  Carta de Sir Isaac Newton para Robert Hooke. Historical Society of Pennsylvania

[4]  ECO, Umberto. Nos ombros dos gigantes. Rio de Janeiro: Record. 2018

[5] LUCRETIUS, Titus. “Livro 1”. De Rerum Natura – Principium cuius hinc nobis exordia sumet, nullam rem e nihilo

[6] Segundo Renato Paz, da Amazon Web Services: “consistência, não brilhantismo, é a chave do sucesso a longo prazo”.

[7] Colaboração de Henrique Donnabella

[8] Conta a história que esta torta foi criada nos anos 1880, no Hotel Tatin, em Lamotte-Beuvron, a mais ou menos 160 km ao sul de Paris.O estabelecimento era gerido pelas irmãs e proprietárias Stéphanie e Caroline Tatin. Stéphanie era responsável pela cozinha e, num dia particularmente atarefado, em que, além de tudo, ainda tinha que levar ao forno uma tradicional torta de maçã, terminou se atrapalhando e terminou por deixar as frutas por tempo demais cozinhando na manteiga e açúcar. Resultado: para tentar salvar a sobremesa, ela teve a ideia de colocar a massa tampado a boca da panela e enfiá-la diretamente no forno para assar. Ao servi-la, de cabeça para baixo, verificou que os hóspedes adoraram a invencionice. Nascia, então, uma receita que seria replicada em todo o mundo.

[9] Considerando que começamos pela mitologia nórdica – o kenning para se referir a Odin é “pai de todos”. (NA)

[10] Bloco de texto desenvolvido a partir de comentários de Marcos da Cunha Ribeiro

[11] Por modelo de negócios eu não me limito a negócios do ponto de vista mercantilista da palavra, mas a qualquer processo de desenvolvimento de bens de significado. (NA)

[12] PORTER, Michael E. Estratégia competitiva: Técnicas Para Análise de Indústrias e da Concorrência. São Paulo. Atlas. 2005

[13] TEIXEIRA, Thales S. Disruption Starts with Unhappy Customers, Not Technology. Harvard Business Review. Junho de 2019

[14] Aprendizado em aulas sobre Inteligência Artificial com o Paulo Vilhena na Casa do Saber

[15] McCRAW, Thomas K. O profeta da inovação. Rio de Janeiro. Record. 2012

[16] CHRISTENSEN. Clayton M. O dilema da inovação. São Paulo. MBooks. 2019