Novilínguas

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Fábio Adiron

No final de 2020 eu escrevi um artigo[1] onde discorria sobre o uso das palavras e, particularmente, a respeito de um artigo acadêmico que mostrava que o uso de jargão estava associado a profissionais de baixo-médio escalão com a intenção de se auto promoverem. No mesmo artigo eu também explicava a diferença entre jargão, linguagem técnica e gíria.

Alguns meses e algumas leituras depois me defronto com uma nova possibilidade além dessas: a possibilidade de que alguns grupos socioculturais podem ter de criar uma inacessibilidade conceitual relativa dentro dos seus discursos.

Ideias e raciocínios que só podem ser expressadas em algum tipo de padrão linguístico próprio e não em outros e, ainda que alguns deles façam sentido (as complexas teorias físicas dependem de sistemas de linguagem matemáticos), nem todo padrão exclusivo de grupos é decorrente desse tipo de situação complexa.

Algumas sociedades (e aqui me refiro a grupos de pessoas com background e estilos semelhantes) fazem uso dessa linguagem para bloquear alternativas conceituais que são contrárias a seus interesses.

Nada diferente da novilíngua[2] orwelliana. Inventamos palavras exclusivas. Atribuímos novo sentidos a outras. Distorcemos o significado tradicional.

O objetivo é claro, dentro dessa nossa nova hermenêutica[3] tornar impossível o contraditório.

Ao invés de aceitar a crítica, retruca-se dizendo que está usando a palavra em outro sentido ou, que dentro do seu campo de especialidade o termo mal usado significa outra coisa.

Desgraçadamente até a nossa pobre ortografia já é vítima do efeito novilinguístico, há não muito tempo recebi uma resposta de uma pessoa que, na sua área, uma palavra se escrevia daquele jeito (Aurélio Buarque de Hollanda e o Antonio Houaiss deram três piruetas nas suas tumbas. Que seus fantasmas venham puxar os pés desse apedeuta)[4]

E quem é sapo de fora não pode, nem deve, chiar, sob o risco de ser acusado de entrar em um tema que não é seu lugar de fala[5], mas o seu lugar de cale-se.[6]

Como diz a Profa. Maria Kehl no artigo citado: “Não quero imaginar um mundo em que cada um de nós só pudesse dialogar com seus supostos “iguais” em gênero, cor da pele ou classe social.”

Não quero imaginar um mundo onde eu não possa debater e dialogar com pessoas que atuam em outros ramos de atividade ou outras áreas de especialidade dentro da empresa.

Claro, existe toda uma construção ideológica sobre o problema[7], mas também existem várias outras de fundo psicológico (medo, autodefesa, arrogância) que também merecem uma análise mais aprofundada. Eu sei, não é o meu lugar de fala, mas ainda vou pesquisar mais a respeito.

De qualquer forma, se acreditamos em uma sociedade mais igualitária e diversa e entendemos que a criatividade se promove no encontro de campos associativos diferentes, o único caminho a seguir é o proposto por Chomsky:

“Um componente fundamental da natureza humana é a necessidade do trabalho criativo, da investigação criativa, de criação livre, sem as limitações arbitrárias das instituições coercitivas, se depreende que uma sociedade decente deveria elevar ao máximo as possibilidades de realização dessa característica humana fundamental. Isto significa tentar a superação dos elementos repressivos, opressivos, destrutivos e coercitivos que se encontram em toda sociedade real – na nossa, por exemplo – como resíduo histórico.” [8]


[1] Palavras, palavras, palavras – https://adiron.com.br/consultoria/palavras-palavras-palavras/

[2] Noviíngua, novafala ou novidioma era o idioma fictício criado por George Orwell no seu livro 1984 que impedia a verbalização supostas heresias políticas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Novil%C3%ADngua

[3] Só para não me contradizer usando palavras incompreensíveis: hermenêutica é a técnica usada para analisar o sentido das palavras

[4] Essa você procura no seu dicionário

[5] OLIVEIRA, Dennis. Sobre identitarismos, antirracismos e lugares de fala. https://jornal.usp.br/artigos/sobre-identitarismos-antirracismos-e-lugares-de-fala/

[6] KEHL, Maria Rita. Lugar de cale-se! https://racismoambiental.net.br/2020/08/11/lugar-de-cale-se-por-maria-rita-kehl/

[7] GOMES. Wilson. Precisamos falar sobre o lugar de fala. https://revistacult.uol.com.br/home/precisamos-falar-sobre-o-lugar-de-fala/

[8] CHOMSKY, Noam. Language and Politics. Oakland. AK Press. 2004

Descrição da imagem: Imagem do filme “1984” (versão de 1956)