Fabiano é um ser confuso e solitário. Atrapalhado com as palavras e, quando as usa sai sempre prejudicado. Ele percebe a existência de dois mundos – o da natureza, dos objetos e da cultura, dos fatos sociais – que ele não consegue conciliar.
A sua linguagem impõe limites estreitos à organização do seu pensamento.
Fabiano percebe que a linguagem distingue o homem. Sente que ela é fator importante para a conquista de espaço na sociedade e que dela depende o desenvolvimento da capacidade intelectual, própria do homem, que é dada pelo sistema linguístico.
Em determinado momento do livro ele se questiona: como posso pensar se não tenho as palavras?
Fabiano é uma personagem fictícia de Graciliano Ramos em Vidas Secas. E uma realidade cada vez mais frequente na sociedade.
Um mundo menos inteligente
Estamos ficando menos inteligentes como sociedade em geral e isso não tem nada a ver com medidas de QI, QE ou qualquer outro modelo de mensuração de capacidade cognitiva. Não precisamos deles para saber disso.
Quando Vigotski publicou o seu “Pensamento e linguagem” em 1934, ele já mostrava que a linguagem é a ferramenta capaz de transformar o rumo das nossas atividades e a organização da memória, da atenção e do pensamento.
Quem se apropria da linguagem altera de forma qualitativa seu modo de pensar, perceber e entender o mundo à sua volta.
Sem linguagem, o desenvolvimento humano não acontece.
No entanto, o que se nota a cada dia é uma redução da riqueza vernacular[1] que permite o pensamento amplo. O inventário de palavras que conhecemos e usamos se reduz dia-a-dia.
Estamos deixando para trás a polifonia e voltando para a sonoridade monofônica. Um retrocesso, sem dúvidas.
Eu sou aquele anacronismo[2]
Ter um repertório polifônico não significa que você precisa começar a falar e escrever como o Padre Vieira no século XVII,
Toda língua que não se renova cai em desuso e, à medida que seus usuários vão desaparecendo, ela desaparece junto. Muitas já morreram na nossa curta história humana (a escrita não tem mais do que 6 mil anos e mesmo línguas que foram documentadas desapareceram).
O Houaiss tem cerca de 230 mil verbetes, o Aurélio mais de 350 mil. Os dicionários mais famosos de inglês têm quase 500 mil, sendo que apenas 20% são consideradas obsoletas. Em qualquer língua, um vocabulário avançado é aquele que alcança de 8 a 10 mil palavras, deveria ser a nossa base para a língua materna.
Afinal, um vocabulário intermediário vai refletir uma inteligência mediana (para não dizer medíocre, mas as pessoas que não sabem o sentido correto de medíocre podem se ofender).
Por outro lado também não pode se limitar às novilínguas[3] que surgem a cada novo best seller de negócios do mercado ou a cada novo meme que circula.
Especialmente quando essas novas linguagem se limitam a grupos exclusivos que fazem uso delas (e, em não poucos casos, distorcem o sentido da palavra de forma excluir os que não fazem parte do clube).
A língua sem palavras
As pessoas têm se comunicado, cada dia mais, apenas com a troca de sinais gráficos. Os mais frequentes são os emojis, que podem ser engraçadinhos numa publicação na rede social, mas não explica o que realmente quis dizer.
Um positivo pode significar gostei, estou de acordo, um sinal neutro para não deixar a pessoa no vácuo ou até mesmo “a conversa acabou, não me perturbe mais”. O positivo americano não é educado no Brasil e, para agravar a situação, recentemente virou uma símbolo de manifestações racistas.
Alguns pode alegar que muitas línguas usam sinais gráficos, especialmente as do extremo oriente com seus ideogramas. No entanto, no Japão, esses ideogramas geram mais meio milhão de palavras diferentes.
Um amigo, brincando sobre o assunto, disse que os egípcios já usavam emojis, eles chamavam de hieróglifos. Será que vamos precisar de um novo Champollion no ano 4000 para decifrar o que estava escrito no nosso “Iphone da Roseta”?
Quando não são figurinhas são siglas, e essas também têm mudado de significado de acordo com a modinha do momento.
Em busca da inteligência perdida
É a linguagem que vai constituir cada sujeito, pois é por meio dela que ele interage com o mundo, construindo simbolicamente os significados do mundo e de si mesmo.
O nosso aparelho psíquico é um aparelho de memória e de linguagem constituído pela existência de traços que adotam a função de memória e de elemento articulador de associações. É a linguagem que vai permitir as associações entre campos conceituais diversos, desenvolver nossa inteligência e a nossa criatividade.
Quando eu estava na 8ª série, meu professor de português, o inesquecível Prof. Mariano nos deu uma tarefa, dentre outras tantas para enriquecer o nosso vocabulário, que consistia em traduzir o hino nacional. Afinal, como é que nós poderíamos entoar o hino sem saber o que estávamos falando?
Como exercício, deixo a letra de Antwort[4], música do Premeditando o Breque dos anos 80, com os votos de uma boa malhação na sua inteligência.
Por que acepilhar essa abúlica caterva?
Ah! Por que deblaterar a parenética mendaz?
Se a vida estultifica o prostídeo nefário
Antagoniza o ostíolo arbitrário
Nos aproeja à insidia salaz?
Por que o deletério não compunge o opíparo?
Por que o orizófago demora a esgazear?
Respondam, respondam pávidos, píreos, méleos
Respondam lúbricos márcidos, délios
Que bacorejem sem clangorejar
Talvez o pulverácio ababilhe o arlequíneo
Quem sabe o deletério nunca chegue a acrisolar
Mas nunca beligerante clamor será dado
Antes que o férula avoque açodado
Seu epínício palúrdio e mordaz
Aonde o heliófago melífluo se amorena?
Como é que a estroinice não abrolha o chavascar?
Onustos, todos onustos do óbice ástreo
Achaparrados por álacres xetas
Sem a resposta pra eu muxoxar
[1] Caso você não saiba o que é vernáculo, um bom dicionário pode ajudar
[2] Não deixe de ler o soneto de Bernardo Guimarães: https://pt.wikisource.org/wiki/Eu_vi_dos_p%C3%B3los_o_gigante_alado
[3] Recomendo a leitura de “Novilínguas” em https://adiron.com.br/consultoria/novilinguas/
[4] Responder, em alemão