“A banalização superficialista comporta uma reiteração e uma uniformidade infinitas. As apreciações, anteriormente ligadas à profundidade mesma da vida, podem tornar-se banalmente superficiais…”[1]
Nicolas Berdiaev
A felicidade aparece na filosofia com Demócrito de Abdera, cinco séculos antes de Cristo e desaparece com Kant, no século XVIII, ao afirmar que como a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, ela nada tem a ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse à investigação filosófica. Sua argumentação foi tão convincente que, a partir dele, a felicidade desapareceu da obra das escolas filosóficas que o sucederam.
Apenas no século XX o tema vai ser retomado com Bertrand Russell e com o filósofo espanhol Julián Marías que dedicou ao tema um livro notável, “A felicidade humana”, em que estuda a história dessa ideia, da Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que a ausência da reflexão filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de como esse mesmo mundo anda muito infeliz
Já no século XXI a questão da felicidade volta ao debate pela porta dos fundos, ou seja, será que essa busca de felicidade não está sendo maléfica às pessoas?
Em 2016 a jornalista britânica Ruth Whippman, residente nos Estados Unidos, publicou o livro “América Anxious”[2], com o subtítulo “como a busca da felicidade está criando uma nação de nervos destruídos”.
No livro, ela chamava a atenção de que o país era, segundo a OMS, o de maior incidência de distúrbio de ansiedade, um em cada 5 habitantes sofriam, em maior ou menor grau, desse distúrbio.
Não muito diferente das nossas plagas que, mesmo deitada em berço esplêndido, sofre dos mesmos problemas. Segundo a mesma OMS, em relatório de 2018, o Brasil é o país latino-americano com maior taxa de incidência do mal, cerca de 1 em cada 10 habitantes tem distúrbios de ansiedade (também somos campeões latino-americanos de incidência de depressão).[3]
Dois anos depois, em um livro bastante espirituoso, Carl Cederström[4] traçou nossa concepção atual de felicidade desde suas raízes na psiquiatria europeia do início do século XX. Ele argumenta que a felicidade agora é definida pelo desejo de ser “autêntico”, de experimentar prazer físico e de cultivar uma individualidade peculiar. Mas nos últimos cinquenta anos, essas ideias antes revolucionárias foram cooptadas por corporações e anunciantes, levando-nos a viver vidas cada vez mais insatisfatórias, inseguras e narcisistas.
Então faz sentido que haja toda uma indústria dedicada a aliviar as ansiedades dos americanos e do mundo ocidental (ou ocidentalizado). O único problema, de acordo com Whippman, é que a busca pela felicidade é o que causa nossas ansiedades em primeiro lugar e, apesar dessa indústria da felicidade ser multibilionária a questão é: de por que estamos sempre em busca de contentamento e nunca encontrá-lo? É uma grande indústria.
A indústria de autoajuda vale cerca de US $ 11 bilhões só nos Estados Unidos. Depois, há esse novo tipo de mania de espiritualidade, que é a própria indústria. A felicidade se tornou o produto de consumo perfeito porque nunca podemos ter o suficiente dela, sempre continuamos comprando mais, é uma indústria que é incrivelmente resiliente, mesmo durante a recessão, quando todas as indústrias estão quebrando e queimando, ainda estamos comprando livros de autoajuda e produtos de atenção plena e esteiras de ioga e todo o resto.
Pessoas que parecem constantemente estressadas, mas estão obcecadas em falar sobre felicidade ou sobre sua busca pessoal desse estado.
O que me leva a crer que, além do distúrbio de ansiedade, essas mesmas pessoas tem algum tipo de distúrbio obsessivo que as faz viver permanentemente dentro do “complexo industrial da felicidade”, de aulas de ioga e meditação a livros de autoajuda e grupos de apoio onde a felicidade é um foco constante.
Por ser um mercado tão significativo, a toda hora pululam produtos novos, que são sempre infalíveis até a chegada da próxima onda de produtos que serão ainda mais infalíveis(não por acaso me vieram à cabeça as fórmulas mágicas de emagrecimento sem esforço).
Luc Ferry[5], o filósofo e ex-ministro de educação da França, é outra voz que condena esse processo industrial da felicidade como propósito de vida. Segundo ele “a felicidade é impossível. Podemos ter momentos de alegria. Desde que se ama alguém, que se tem filhos, a felicidade se torna impossível, pois há preocupações. A “felicitização” do mundo é uma mercadoria que se vende bem: livros, aplicativos, sem contar quem ganha dinheiro de quase todo mundo.”
O felicitismo tem sua origem na psicologia positiva norte-americana dos anos 1980. A autoajuda tomou conta do mundo, que tem sua origem numa sequência devastadora: desconstrução da transcendência, que começa com Schopenhauer e passa pela filosofia do martelo de Nietzsche, que quebra os ídolos, Heidegger e os filósofos da suspeita, Marx, Freud.
Claro que mesmo que tenhamos sentimentos dúbios e reservas em relação à psicologia positiva, não podemos acusá-la de ser a única responsável pelo crime de criar a auto ajuda. [6]
Sem transcendência, tornamo-nos materialistas, numa imanência radical, tendo Spinoza como pensador (mesmo que você nunca tenha ouvido falar em Spinoza).
Para um mundo sem ideias e utopias, o que resta é o cuidado de si. Não há mais grandes causas. Só resta cuidar do próprio umbigo.
A felicidade se torna uma jornada pessoal e individual. Olhando profundamente dentro de você, sobre a atenção plena, sobre o seu próprio pensamento. Tudo isso estando dentro de sua própria cabeça, e refazendo seus próprios pensamentos por dentro. Se só resta o meu umbigo, preciso gozar ou encontrar a sabedoria em algum “ismo” que me permita viver bem comigo mesmo.
Quando John Naisbitt escreveu seu Megatendências, nos idos de 1980, ele já profetizava uma sociedade que seria, ao mesmo tempo, high tech e high touch. Certamente ele não conseguiu imaginar o que efetivamente seria esse high touch.
O discurso é recorrente e cansativo: “Estou feliz, estou com a pessoa certa, estou fazendo o que amo, estou tão feliz quanto poderia ser.” Há uma ansiedade real com toda a ideia de felicidade o que não é exatamente muito divertido. É uma tarefa árdua: se eu fizer isso ou aquilo, se tiver isso ou aquilo, se for para esse ou aquele lugar, se praticar essa ou aquela técnica, então posso me tornar mais feliz.
Se fosse simples assim, a infelicidade já teria sido erradicada do planeta.
De fato, há momento em que parece que realmente foi erradicada. Tudo é bom, tudo é positivo, somos as pessoas mais felizes do mundo – especialmente nas redes sociais. Nem Eleanor Porter conseguiu mais do que nós. Queremos fingir que somos felizes ao mesmo tempo em que buscamos constantemente a felicidade.
O inglês Bertrand Russell dedicou ao assunto a obra “A conquista da felicidade”, usando o método da investigação lógica para concluir que é necessário alimentar uma multiplicidade de interesses e de relações com as coisas e com os outros homens para ser feliz.
Para ele, em síntese, a felicidade é a eliminação do egocentrismo.
Eu não vejo outro caminho. A menos que você tenha prazer na ansiedade.
Agradecimento: gostaria de agradecer ao Cadu Lemos, ao Rodrigo Giaffredo e à Virginia Fantoni pelo tempo que dedicaram à leitura prévia do texto e às suas valiosas colaborações.
[1] BERDIAEV, Nicolas. De la destination de l´homme. citação traducida por Luis Felipe Pondé em Crítica e Profecía.
[2] WHIPPMAN, Ruth. America anxious – how our pursuit of happiness is creating a nation of nervous wrecks. St. Martin’s Press.2016
[3] https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/brasil-e-o-pais-mais-deprimido-e-ansioso-da-america-latina/
[4] CEDERSTRÖM, Carl. The happiness fantasy. Polity Press. 2018.
[5] https://veja.abril.com.br/brasil/luc-ferry-a-felicidade-nao-existe-so-a-serenidade/
[6] Colaboração do Cadu Lemos, mestre do Flow.