Fábio Adiron
You shall digest the venom of your spleen,
Though it do split you; for, from this day forth,
I’ll use you for my mirth, yea, for my laughter,
When you are waspish.
(Shakespeare – Julius Caesar – Ato IV, cena III)
Na semana passada, em um texto publicado no New York Times[1] e republicado em português em O Globo[2], o psicólogo organizacional Adam Grant descreveu o estado atual do comportamento das pessoas durante a pandemia como um processo de definhamento.
Não se trata de Burnout, nem de depressão, mas o meio do caminho entre o fundo do poço do desespero e a sensação de estar nas nuvens do vigor e foco absoluto do flow.[3]
Coincidentemente (se é que existem coincidências) eu tinha acabado de reler o “Spleen de Paris”, os pequenos poemas em prosa de Charles Baudelaire, e imediatamente me veio à cabeça a monotonia e o tédio que estão por trás do significado do termo spleen.
Em francês, o termo spleen (diferentemente do inglês que se refere ao baço ou, do lado emocional, à raiva) representa o estado de tristeza pensativa ou melancolia. É um profundo sentimento de desânimo, isolamento, angústia e tédio existencial, que Baudelaire exprime em vários dos seus poemas.
Apesar de famoso pelo uso do poeta do decadentismo não foi criado por ele, e já fora utilizado anteriormente na literatura do romantismo, Shakespeare já relacionava o tédio com alguma disfunção do baço.
O mal do século XIX, redivivo no XXI
O tédio começou a ser visto como uma epidemia nos anos 40 do século XIX. Lamartine teria sido o primeiro a ter dado expressão a esse mal.
Kierkegaard o definia como um estado existencial no qual nada apetece. Uma condição em que falta qualquer significado na vida e essencialmente constituída pela inclinação das pessoas à vaidade. Era necessário, encontrar maneiras de se livrar dessa disposição ao tédio.
Blaise Pascal, vendo no tédio um sentimento de abandono e insignificância, vai sugerir a tentativa de fuga constante dessa “tristeza insuportável”
Os intelectuais da escola de Frankfurt se aprofundaram nesse tema, especialmente Walter Benjamin e Theodor Adorno que acreditavam que o tédio do homem daqueles tempos poderia ser resolvido com o desenvolvimento da indústria cultural.[4]
É nos momentos de tédio em que realmente refletimos e observamos atentamente ao ser, ao tempo e ao espaço. Em outras palavras, é nos momentos de tédio em que fazemos filosofia.
Conta-se que certa vez um grande neurologista foi procurado por um novo paciente. O homem queixou-se do mal do século – falta de vontade de viver, profundas variações de humor, o tédio.
O médico, depois de examiná-lo declarou que não era nada grave e que tudo que ele precisava era se distrair de vez em quando. Sugeriu que ele fosse assistir Deburau (um famoso comediante da época) e ele iria a ver a vida de outra forma.
Ao que o paciente respondeu: “- Ah caro senhor, eu sou Deburau.”[5]
Jogo de espelhos
Preso dentro de casa, o homem moderno, por mais que esteja trabalhando e, algumas vezes imerso em dezenas de encontros virtuais, acaba perdendo muito da percepção de alteridade, o outro é apenas uma imagem diante da tela.
E, mesmo diante das telas do computador ou do smartphone, o reflexo de si mesmo é inevitável.
Tudo é sempre igual e ele se defronta consigo como que diante de espelhos que refletem não somente a sua imagem exterior como todas as imagens do seu interior.
Espelhos estão relacionados com imagens que se duplicam, sombras, reflexos, réplicas. Imagens pautadas pela mesma chave: a ilusão, o engano, o falso, a perda de identidade. Duplicações, de alguma forma, sugerem a perda de unidade que atormentam as pessoas.[6]
“Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Era, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem as cores, nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saia-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis.”[7]
Talvez seja ousado afirmar que o grande mal gerado pela pandemia é decorrente do inevitável encontro consigo mesmo. O fardo de suportar-se (por mais que os livros de autoajuda ofereçam fórmulas milagrosas de autoconhecimento e amar-se a si mesmo) torna-se intolerável. O autoconhecimento é uma missão nobre, mas não é alcançado com frases de efeito e infográficos bem desenhados.
Como eu não sou capaz de assumir esse problema (a culpa é sempre do outro, ou da situação ou do sistema), quando eu não suporto a minha própria imagem refletida, lanço a origem da minha própria intolerância sobre os outros.
Existem caminhos?
Há solução permanente para o problema? Certamente sim, mas para a maioria das pessoas, que não acessam a beleza da filosofia e nem mesmo sabem lidar com suas realidades, um bom começo, que poderia se tornar uma espiral ascendente em busca dessa capacidade.[8]
O artigo de Grant, sugere alguns caminhos: estabelecer novos desafios, concentrar-se em tarefas ininterruptas, estabelecer pequenos objetivos.
A saída pelo flow pode ser uma forma de enfrentar o espelho, uma vez que, através desse processo é preciso entrar em contato muito íntimo consigo mesmo. Como diria o Rei Stannis do Game of Thrones: “boredom is the lack of inner resources”(o tédio é a falta de recursos interiores). Desse ponto de vista, o artigo de Grant é um convite a um mergulho no espelho.[9]
Por outro lado, se o mergulho não for levado a sério, esses caminhos tornam-se apenas formas de desviar o olhar do espelho e realimentar o tédio e a melancolia. Podem funcionar temporariamente, mas não acredito que sejam uma solução permanente para o problema.
A questão não passa pela simples capacidade de se distrair, que é apenas um afastamento da realidade, mas como lidar com ela. A sugestão de fuga dada por Pascal não parece ser razoável. Borges, por motivos misantropos, abominava os espelhos, muitas pessoas também.
Infelizmente a vacina contra a realidade ainda não está disponível, e sair por aí quebrando espelhos[10], dizem, dá muito azar.
Descrição da imagem: quadro de Bertha Wegman (1847-1927) mostrando uma mulher debruçada sobre uma mesa em atitude de desespero
[1] There’s a Name for the Blah You’re Feeling: It’s Called Languishing – https://www.nytimes.com/2021/04/19/well/mind/covid-mental-health-languishing.html
[2] https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/estamos-definhando-afirma-psicologo-sobre-saude-mental-na-pandemia-24980103
[3] Assim como meu amigo Cadu Lemos também não me agradam as traduções para essa palavra que subestimam a sensação descrita por Mihaly Csikszentmihalyi , fluidez, conforme o próprio Cadu, é que mais se aproxima.
[4] Saint Martin. Gabriel. A pintura de Edward Hopper e novos olhares sobre o tédio pandêmico. https://cartacampinas.com.br/2020/12/a-pintura-de-edward-hopper-e-novos-olhares-sobre-o-tedio-pandemico/
[5] História contada em Passagens de Walter Benjamin
[6] Ortegosa. Marcia. Cinema noir – espelhos e fotografias. Anna Blume. São Paulo. 2010
[7] BORGES, Jorge Luís. Animais dos espelhos in Livro dos seres imaginários. Editora Globo. Porto Alegre. 1982
[8] Colaboração de Cadu Lemos
[9] Colaboração de Haendel Mota
[10] Edgar Morin nos lembra que espelhos quebrados significam morte em algumas culturas ancestrais e que as pessoas cobriar espelhos quebrados com lençóis para impedir que, em caso de morte, o duplo do morto fugisse. (in O cinema e o homem imaginário de 1980, citado no livro da Márcia Ortegosa).