Tenho lido muito a respeito de como será o mundo após a pandemia, inclusive de gente muito séria e que eu respeito no mercado. Apesar de ainda entender que é quase impossível fechar questão sobre qualquer previsão, eu tenho certeza de que existe um roteiro para a retomada, quando ela chegar.
Por onde começar?
Uma consequência inevitável da disrupção que estamos passando é a de que o comportamento de consumo irá mudar. Não será mais o mesmo do pré-Covid19, mas também não será o do tempo de confinamento.
Imagino que, abertas as porteiras, teremos um efeito panela de pressão destampada repentinamente. As pessoas que ficaram semanas dentro de casa sairão vorazmente atrás de tudo do que foram privadas temporariamente.
Por outro lado, o senso criado no período de quarentena, de que se pode viver com menos, também fará os consumidores serem mais ponderados e se questionarem verdadeiramente se vale a pena esse frenesi de “vou fazer tudo agora”. O que eu quero dizer que é que pode haver um freio natural se contrapondo a essa vontade de recuperar o tempo perdido. Pode ser que muitas pessoas tenham conseguido descobrir que, para o futuro, precisam menos que precisavam no passado.[1]
Não há dúvidas que pós coronavirus todos estarão mais pobres de dinheiro, portanto algumas demandas de curto prazo represadas serão saciadas no pós vírus, porém determinados negócios serão muito impactados no longo prazo, alguns setores vão se dar bem com a crise: saúde e farmacêutico, deliveries, e-commerce. Outros vão continuar a sofrer: turismo, aviação, automobilístico, imobiliário.[2] No negócio imobiliário é bem possível que a demanda por imóveis residenciais que tenham espaço para instalação de home office sobrevivam melhor que os grandes centros de conjuntos comerciais.
Esse é o momento em que as empresas precisarão tomar cuidado para não correr o risco de apostarem suas fichas em um comportamento atípico.
Satisfeita essa necessidade, começará a fase de construção de um novo padrão. Consumidores começarão a fundir a parte boa da liberdade com aquilo que aprenderam ser relevante no isolamento.
É o momento em que devemos começar a estudar, com bastante profundidade e cuidado, quem é o novo consumidor de cada mercado. Identificar novos hábitos, novas jornadas e uma nova compreensão do que agrega valor para cada nova persona que vamos descobrir.
Como analisar essas novas personas e jornadas?
Costumávamos dizer nos primórdios do database marketing que “comportamento passado é o melhor previsor de comportamento futuro” e, a partir desse histórico, construíamos nossos modelos de previsão e propensão.
O problema é saber que vai sobrar do passado. O futuro, como todo resto, não é mais o que costumava ser.[3] Será que vamos poder sustentar nossos modelos nesse passado? Acredito que será bastante improvável.
Se realmente acontecer a mudança que citei acima, vamos ter de começar a reprogramar os nossos sistemas de modelagem para descobrir o que sobrou do passado que ainda vale (mesmo porque não acredito que o ser humano será totalmente novo) e quais as variáveis novas que passarão a ser relevantes para a nossa análise.
Já existia um movimento em curso que será mais acelerado pela crise: o adernamento (expressão bem naval do Eduardo Ramalho) ao digital, que significa que dados de comportamento passado e o potencial de um cliente tem e terão menos valor do que que dados de contexto e intenção de compra. Por outro lado, os dados de comportamento recente e os dados contextuais serão, finalmente, mais valorizados
De qualquer forma, para a classe dos cientistas de dados da “velha guarda” como os que eu conheço, isso não é novidade. Tivemos vários choques na economia que mudaram o comportamento de forma radical após seu acontecimento, e havia modelos especiais para continuar prevendo comportamentos futuros ainda usando o comportamento passado. Estes modelos eram muito famosos entre os economistas, e eram conhecidos como Modelos Econométricos Bayesianos, com variáveis de “intervenção”.[4]
Pego todos os dados ou preciso filtrar?
Vai dar trabalho repensar a estratégia do negócio.
Tudo começa pela estratégia. Sem ela, nenhum dado, ferramenta ou cientista de dados poderá sequer começar o trabalho.
Que problema quero ver resolvido? como abordá-lo? como medir os resultados?
Uma vez identificados quais os dados que permitem responder essas questões é que será possível definir quais os dados serão coletados para tomada de decisão. Armazenar, tratar e organizar esses dados e começar a testar, testar e testar.
Não nos falta ferramental nem capacidade intelectual. Temos gente muito boa para trabalhar dados.
Desde que esses dados sejam coletados das suas mais diversas fontes, é claro.
Desde que as empresas estejam dispostas a gastar um tempo para organizá-los, antes de se precipitar em conclusões inócuas.
Desde que os gestores realmente acreditem que cabe a eles formularem perguntas relevantes e cabe aos dados respondê-las.
Meu negócio precisa mudar?
Se o consumidor mudou, os dados mudaram e os modelos serão refeitos, então eles vão gerar insights novos.
O que entendíamos como proposta de valor para o cliente, como diferencial da empresa, como modelo de negócios, talvez, não tenham mais nada a ver com o que acontecia antes do caos.
Identificar o que é relevante e agrega valor para o mercado será a grande missão dos negócios.
Será um processo de reinvenção. Da cadeia de valor, do modelo de negócios e, em muitos mercados, do que serão as próprias empresas que atuarão nele.
Quem vai fazer isso?
Nesse processo de reinvenção será fundamental um novo tipo de profissional. E vamos precisar muito dele.
Não serão os lógicos, nem os especialistas em processos previsíveis. Não vai adiantar nada sermos melhores no que já éramos bons, mas aprendermos a fazer diferente do que foi feito até agora.
Como preconizava Aristóteles, citado por Paulo Vilhena no seu fabuloso curso de Inteligência Artificial e Criatividade, é o tempo dos profissionais com raciocínio poético.
E não se confundam, por poético não estou falando da habilidade de escrever sonetos, mas da capacidade de transitar e gerar ideias vindas de campos associativos diferentes.
Criar o que não existe, encontrar a resposta imprevisível – a rima rica entre mercado e negócio. A metáfora entre relevância e proposta de valor.
Profissionais com uma estrutura de repertório que não pode se limitar a uma área de especialização. Que tenham articulação de raciocínio para uma inteligência que se alimenta de dados.
Vamos precisar de pessoas experientes com bom senso, sem modismo, mas que aceitam e praticam o novo, que entendam de big data e de analytics e como podem ser usados em benefícios dos negócios.[5]
Qual vai ser a velocidade da mudança?
Finalmente, tudo isso não vai valer nada se as empresas não mudarem seus processos de decisão e a sua capacidade de agir sobre os insights.
Não vai dar mais para ficar esperando a volta dos “bons e velhos tempos”, a concessão de algum incentivo fiscal, o momento de menor risco.
Os movimentos precisam ser rápidos, as empresas não estão sozinhas no mundo, precisam agir antes que algum outro aventureiro o faça.
Isso vai exigir menos centralização do poder, menos burocracia e muito menos reuniões inúteis.
Um novo processo de autonomia e responsabilidade, que imagino que já deva estar se construindo em tempos de home office, pelo menos para aqueles que estão percebendo como isso é possível e pode ser produtivo.
À guisa de conclusão: de volta ao começo
No começo do milênio, com a internet já bem desenvolvida, muitos diziam que finalmente tinha chegado o momento de entregar valor para o cliente de uma forma única e personalizada.
A internet migrou para os smartphones, especialmente a partir do primeiro Iphone em 2007. Proliferaram os aplicativos de todos os tipos e categorias de serviços.
Toda essa tecnologia gerou uma avalanche de dados. Nunca tivemos a oportunidade de saber tanto sobre qualquer pessoa.
Mesmo assim, são poucas as empresas que realmente sabem o que os seus clientes valorizam.
Proporcionar experiências boas para os clientes continua sendo a palavra de ordem e isso só se consegue com foco no cliente. Boas experiências ajudam na fidelização, na repetição de compras, nas indicações etc.
Se eu não entender o que é um bem de significado para o cliente, nunca vou conseguir agradá-lo.[6]
Isso é que vai gerar resultados positivos para o negócio.
Agradecimentos
Além das preciosas intervenções do Carlos Abdalad e do Eduardo Ramalho, citadas durante o texto, gostaria de agradecer as não menos preciosas ajudas de:
© Fábio Adiron 2020
[1] Colaboração de Carlos Abdalad
[2] Colaboração de Eduardo Ramalho
[3] Paul Valéry – Notre Destin et Les Lettres. 1937
[4] Colaboração de Carlos Abdalad
[5] Colaboração de Eduardo Ramalho
[6] Filipe Pondé – Marketing Existencial – 2017