Fábio Adiron
No princípio era o verbo, nos relata o primeiro versículo do evangelho de João. De fato, conforme a tradição teólogica judaico-cristã, a criação do mundo irrompe com as palavras yə-hî ’ō-wr (que na vulgata recebeu a tradução que conhecemos bem: fiat lux). A partir desse momento as palavras ganham vida e se tornam a maneira como nós nos comunicamos com o resto do mundo desde a pré-história, com as tradições orais existentes, até o dia de hoje. Ou a partir do momento em que o homem transforma as palavras em símbolos gráficos e passa a documentá-las, há cerca de 6 mil anos.
Do momento do nascimento até o da nossa morte, somos cercados por palavras e, talvez por isso mesmo, nem sempre damos o devido valor ao que elas representam. Por outro lado, a maioria dos estudiosos da inteligência humana concorda que é a linguagem que promove o nosso desenvolvimento cognitivo e que nos diferencia dos demais seres vivos.[1]
O que não significa obrigatoriamente que o uso das palavras é sempre inteligente. Não é à toa que outro sábio judaico, o rei Salomão, preconiza nos seus provérbios que “até um tolo pode passar por sábio e inteligente se ficar calado.” Essa recomendação também estava presente entre os estóicos gregos e romanos.
A palavra vira polêmica
No século XI da era cristã, surge a primeira grande polêmica em torno das palavras, quando Roscelino de Compiègne afirma que não existe nenhuma característica própria das coisas que as tornem universais, o que as torna reais são os nomes que damos a elas. Surge o nominalismo.
Aristóteles sustentava, na sua “Metafísica”, que o universal não é essência, isto é forma, nem substância primeira, isto é, objeto individualizado, mas sim qualidade. Já para nominalistas, as coisas são apenas atos da nossa mente expressos por um nome. A partir daí uma grande polêmica se instaura na metafísica e na teologia.
Guilherme de Okham (o mesmo da navalha) será a voz do nominalismo radical. Segundo ele, tudo que existe é particular, as generalizações universais são apenas flatus vocis, ou seja, emissões sonoras. Só as palavras são universais, são os termos mentais que universalizam as coisas.
Aliás, essa disputa entre nominalistas e realistas é o grande tema de “O nome da Rosa”, livro de Umberto Eco que apresenta os debates entre os teólogos a respeito disso. Se você viu o filme mas não leu o livro, perdeu a discussão. O título do livro não é casual, ainda que o mesmo Shakespeare que dá título a esse artigo tenha pontuado que “se uma rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume…”[2]
O nominalismo não acabou na idade média, pelo contrário, foi ressuscitado pelos filósofos empiristas britânicos (especialmente Locke) e chegou ao século XX com Wittgenstein. Ainda que seja considerado como uma questão reducionista e tenha sido refutado por muita gente séria, ainda está presente nos nossos dias, geralmente pelos que gostam de simplismos.
O reducionismo das palavras chave
Les maître mots[3] (palavras chave ou mestras) é um conceito apresentado por Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês, atualmente com 99 anos.
O que ele chama de palavras chave são palavras (ou conjuntos de poucas palavras) que se pretendem ser o começo e o fim de tudo, funcionam como se fossem algo mágico e seu uso serve para dominar, controlar e dirigir todo um universo. Substituem um salvador assumindo-se como a verdade suprema sobre as coisas: “a redução, unidimensionalização, a simplificação, conduzem ao reino da ideia única, matriz simbolizada pelas palavras chave”[4]
Morin já falava na simplificação da disjunção de termos que são colocados em oposição como um dos males das dicotomias modernas. Segundo ele só a intercomunicabilidade entre conceitos é que permite a compreensão exata dos limites e superposições entre eles. Dentro da sequência do pensamento (ver-perceber-conceber-pensar) de Morin, essas palavras acabem sendo um grande obstáculo para a comunicação.
E o que eu tenho a ver com isso?
Se você chegou até aqui, deve estar se perguntando o que a sua vida de profissional de negócios tem a ver com tudo isso?
Infelizmente, muitos acreditam numa falácia que foi criada a partir de uma pesquisa de Mehrabian (mas que não foi criada pelo próprio Mehrabian como bem explica a Virginia Fantoni no seu “Mehrabians me mordam!”[5]) e desvalorizam completamente a força das palavras.
Nossa atuação profissional, como todas as demais, está permeada pelas palavras. Nós as usamos, na maioria das vezes, sem perceber o que ou como estamos falando. Não poucas vezes nos sentimos incompreendidos na nossa comunicação. Em outras tantas, perdidos na comunicação de outras pessoas.
Fruto do nosso uso de palavras universalizadas, de palavras chave, de jargão.
A bipedalidade vertical em passos eretos em substratos terrestres horizontais
Não são poucas vezes que falamos, ou ouvimos, frases como essa, que podem ser muito relevantes para biólogos que estudam primatas, mas ininteligíveis para humanos comuns.
Mas que poderiam ser simplesmente faladas como “andar no chão”,
Segundo Zachariah Brown, jargão se define como “palavras ou expressões socialmente aprendidas, usadas por profissões particulares ou grupos de especialistas, que são usadas no lugar de alternativas que sejam largamente acessíveis ou menos formais, e que são difíceis para quem é de fora do grupo entender”.[6]
Difere da gíria (que não tem uso profissional) ou da terminologia técnica (que é formal, não surge socialmente e, especialmente, onde as palavras não podem ser substituídas por outras sem perder o sentido).
Se a nossa motivação para nos comunicarmos é a clareza ou a compreensão efetiva do que falamos ou escrevemos, o uso desse tipo de linguagem é desnecessário.
Por outro lado, se queremos satisfazer a nossa necessidade de pertencimento, ou queremos usar as palavras como instrumento de defesa, caímos na jargonice[7]. E o uso do jargão serve para outras funções, não para melhorar a eficiência e a eficácia da comunicação.
O jargão (também a gíria) é uma forma de sinalizar intencionalmente que somos parte de um clube fechado de iniciados e de tentar ser respeitado por isso.
O que chama a atenção na pesquisa de Brown é que ele mostra que, assim como pessoas que se sentem inferiores, sócio e economicamente falando, costumam gastar em bens caros e além do seu poder aquisitivo para demonstrar status, também são as pessoas que se julgam inferiores dentro do “clube” que usam mais jargão para compensar seu status inferior.
Funciona mais ou menos como alguns que saem por aí dando carteiradas.
E os membros do clube que realmente são os mais competentes usam menos jargão, privilegiando a clareza e acuracidade dos seus discursos.
A jargonice é inclusive perfeitamente reconhecível por aqueles que não precisam dela, a ponto dos melhores profissionais do mundo financeiro a identificarem como uma forma de esconder falcatruas.[8]
Muito além do lugar comum
Melhorar a nossa comunicação passa por várias questões que podem ser melhor desenvolvidas por pessoas especialistas no assunto, mas nunca podemos esquecer que a escolha das palavras tem um valor muito relevante.
Sempre é bom lembrar que as escolhas das palavras afeta de forma significativa a possibilidade de entendimento, mas ela também depende do público a que nos dirigimos. Não nos comunicamos com crianças como nos comunicamos com os adultos, é indiscutível que a palavra pode ser usada intencionalmente por meio de escolhas e construções para revelar a realidade ou para oculta-la ou distorce-la.[9] Não deveríamos falar com o público em geral como falamos dentro do nosso “clube” profissional.
De um lado para permitir que a interação com os outros seja proveitosa para as partes.
De outro, por que, querendo ou não, seremos avaliados e julgados pelas palavras que escolhemos.
O resto, já diria o mesmo Hamlet, é silêncio.[10]
Título: Shakespeare: Resposta de Hamlet a Polônio quando perguntado o que estava lendo. Se você for mais musical que literário, também pode se referir a “Parole, parole de Ferro & Chiosso, o sentido é o mesmo.
[1] Para quem quiser se aprofundar nessa questão recomendo a leitura de Viaud. Vygotski e Luria, dentre outros.
[2] Shakespeare: Romeu e Julieta, quando Julieta pergunta o que há em um nome.
[3] MORIN, Edgar. Pour entrer dans le XXiéme siécle. Editions de Seuil. 2004
[4] Morin, Edgar. Op cit. Tradução livre
[5] FANTONI, Virginia: https://adiron.com.br/consultoria/mehrabians-me-mordam/
[6] Brown. Zachariah C. ANICICH, Eric M. GALINSKY, Adam D. Compensatory conspicuous communication: Low status increases jargon use. OBHDP Journal 161. pp 274-290. 2020
[7] Não precisa pesquisar, essa palavra não existe nos dicionários (NA)
[8] BUSHEE. B.J. GOW, I.D. TAYLOR, D.J. Linguistic complexity in firm disclosures: Obsfucation or information? Journal of Accounting Research 56. pp85-121. 2018
[9] Colaboração de Evandro Luiz Oliveira, PMP
[10] Shakespeare. Frase de Hamlet segundos antes de morrer.