Fábio Adiron
No começo dos anos 80, quando estudava na FAAP, conheci a Musical Box, uma loja de discos na praça Vilaboim, que tinha o melhor estoque de discos de música clássica. Além disso tinha o Alan (dono da loja) e o Maurício que procuravam entender o gosto de cada cliente e fazer indicações muito precisas.
Na época da Musical Box eu conhecia Saint Saëns apenas pelo seu “Carnaval dos Animais” e fui apresentado por eles à “Dança Macabra”, uma peça maravilhosa que na sua contracapa (estamos falando dos tempos do LP), contava a história do tema musical.
No tempo de Saint Saëns a música clássica estava dividida em duas grandes correntes, a dos compositores que defendiam a música absoluta sem referências a outras fontes, e a dos compositores de música programática (também chamada de descritiva) que tinha por objetivo evocar ideias ou imagens extramusicais na mente do ouvinte, representando musicalmente uma história, cena, imagem ou estado de ânimo. O compositor francês, ainda que fosse considerado um conservador, estava na turma da música programática
A “Dança Macabra” é uma alegoria artística que consiste em mortos ou a personificação da morte convocando representantes de todas as esferas da vida para dançar até o túmulo, normalmente com personagens conhecidos e outros comuns. Foi criada como memento mori[1], para lembrar às pessoas a fragilidade de suas vidas e quão vãs eram as glórias da vida terrena.
Além de diversos exemplos pictóricos espalhados em igrejas e museus da Europa, o tema também inspirou vários compositores desde a idade média até os dias de hoje. No cinema foi retratada na cena final de “O sétimo selo” de Ingmar Bergman.
Na música, o exemplo mais conhecido é a Dança Macabra de Saint Saëns e, ainda que seja um das peças monumentais da música clássica, continua sendo macabra. O primeiro violino representa a morte vindo buscar as pessoas (como se fosse um flautista de Hamelin) para a sua morada final.
De repente, e não mais que de repente, ouvi a música como trilha sonora de uma propaganda da Brastemp. Um anúncio publicitário que se propunha a ser simpático e engraçadinho na defesa de igualdade de deveres domésticos entre homens e mulheres (e, nesse aspecto, está muito bem feito) usando uma referência desastrosa em tempos de pandemia.
Por mais que eu admire a música de Saint Saëns, o que faz uma marca usá-la como trilha sonora de uma peça publicitária em uma época em que todos os dias somos impactados por milhares de mortes, em que o luto por um parente, amigo, conhecido se tornou corriqueiro?
É óbvio que quem escolheu a música não faz a menor ideia a que ela se refere, talvez tenha ouvido numa playlist qualquer e achou bonitinha. Quem aprovou o anúncio no cliente também não e se alguém tem noção do que foi feito não teve coragem de alertar sobre a questão.
Que tenha sido apenas ignorância, senão foi puro sadismo.
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Memento_mori