“Vivemos em um mundo cada vez mais descentralizado.”
Todas vez que ouço essa frase eu me pergunto: se vivemos em um mundo descentralizado por que diabos as organizações (empresariais ou não) continuam tão hierarquizadas?
Se de um lado a democratização do acesso à internet (com todas e suas qualidades e defeitos da overdose de informação) permite que eu me conecte diretamente com o presidente de uma empresa ou com a mais simples das pessoas do mundo, por outro, continuamos seguindo modelos verticais de valores. Concordo que os níveis hierárquicos, na maior parte das organizações, foi reduzido nas últimas décadas, mas isso se deu muito mais por necessidade de ganhos de eficiência e corte de custos do que pela convicção de que as estruturas horizontais tendem a ser mais eficientes.
Caso você tenha dúvidas a respeito disso, basta ver o crescimento do bitcoin (o extremo da organização horizontalizada) que movimenta alguns bilhões de dólares, além, é claro de toda a inundação de criptoativos que estamos presenciando. O mundo bitcoin não tem dono, não tem chefes (nem líderes) e funciona na base do consenso entre os seus players.
E antes que alguém me acuse de estar defendo um modelo socialista ou comunista de mercado, ou a autogestão no estilo titoísta, lembrem que não existe nada mais capitalista especulativo que esse mercado.
O que acontece é que o ser humano tem uma tremenda dificuldade de viver fora de fôrmas que lhe deem formas ou, como diria Ortega y Gasset: “Você sempre vive dentro de formas; Ou seja, tudo o que fazemos em nossa vida, mesmo que se origine espontaneamente dentro de nós, estimulado pelas ocasiões da vida, é realizado dentro de canais ou padrões pré-existentes que aprendemos com o nosso entorno.”[1]
Isso vale para quem estabelece a hierarquia e para quem se submete à ela. Para nós, a falta de hierarquia traz um medo arquetípico da anarquia e do caos. Não é à toa que La Boétie (no século XVI) falava da servidão voluntária e de como o homem se escraviza por vontade própria. Segundo ele, o homem se deixa escravizar de bom grado por três motivos.
O primeiro é o hábito, iludido por aquilo que parece ser mais seguro e confortável (no nosso caso, lembrando que a promessa do progresso e das tecnologias é a de tornar a nossa vida mais fácil e mais prazerosa).
O segundo é a covardia. As definições dos dicionários indicam que a palavra medo significa temor, ansiedade irracional ou fundamentada; receio. Vivemos em tempos de fear mongering – disseminação de rumores assustadores e exagerados de um perigo iminente de despertar propositalmente o medo a fim de manipular as pessoas. O medo de ficar de fora ou até o pavor de ser cancelado nas redes.
Aqui caímos numa situação quase aporética: ao mesmo tempo em que todos se orgulham de ser “livres-pensadores” ou, pelo menos se arrogam ao direito de não precisar de concordar com nada ou com ninguém, nos pelamos de medo de ficar de fora do centro do nicho ou do centro de nós mesmos. O medo de ser considerado um pária de si mesmo? O esdrúxulo, o excêntrico, o irrelevante?
O terceiro motivo, é a participação na tirania, La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor das riquezas sob a guarda dos poderosos, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder. Como numa rede social, o dono do poder se apoia em meia dúzia de asseclas que, por sua vez são, cada um deles, apoiados por outra meia dúzia e assim, de forma exponencial, atingir a massa.
O medo do micélio ou do rizoma.[2] Diferentemente de organizações humanas, tanto o rizoma como o micélio são completamente descentralizados, seja no uso de recursos, na sua reprodução e em suas formas de defesa. Assim como as outras formas de redes descentralizadas, como a matéria escura ou nossas redes de neurônios, eles criam um sistema de consenso entre as pontas, que estão na linha de frente com o ambiente e, portanto, o conhecem melhor o que permite tomadas de decisão mais efetiva.
Sem um controle central, podem resistir ao ambiente como seres unicelulares ou agregados como estruturas reprodutivas multicelulares. Nesse contexto de adaptação moldável resistem aos ecossistemas mas competitivos do planeta e têm a capacidade de “roubar” vantagem competitiva dos seus vizinhos.
Ambos se desenvolvem de forma horizontal, não recebem seus elementos de cima para baixo, mas os absorvem de espécies diferentes. Quando um outro organismo gera uma inovação, eles capturam essa informação genética e a reciclam em elementos base.
Talvez, as organizações que descobriram na reengenharia que a redução de níveis hierárquicos é mais eficiente, um dia percebam a eliminação de todos os níveis hierárquicos pode ser ainda melhor. Se vaidade dos seus líderes e o medo dos seus liderados permitir, é claro.
Até lá as pirâmides ainda serão um objeto de idolatria mágica.
[1] ORTEGA y GASSET, José. Velásquez. WMF Martins Fontes. São Paulo. 2016
[2] Para entender melhor o que são, leia em: http://insanadiron.blogspot.com/2021/12/rizoma-micelio-e-outros-fungos-quaisquer.html