Virginia Fantoni
Portenha típica, nascida em Buenos Aires e tendo morado na Avenida Corrientes durante toda a minha infância, cresci ouvindo os tangos que meu tio Héctor amava cantar…doce lembrança
Entretanto, só fui descobrir as suas sutilezas muito tempo depois, quando resolvi aprender a dançá-lo
O mais surpreendente foi perceber que o elemento mais importante é a conexão que existe entre dois corpos que dialogam, ou melhor, como disse Jorge Luis Borges, “A crença que a luta pode ser uma celebração”
Quanto mais estudo esta arte maravilhosa, mais percebo como toda a magia do tango se aplica (ou pelo menos deveria se aplicar) nas relações interpessoais
Nas famosas “milongas” (lugares onde os argentinos se encontram para dançar) existem códigos de autorregulação que devem ser seguidos, que envolvem respeito absoluto aos outros dançarinos, assim como à parceira ou ao parceiro
O convite
O parceiro (ou a parceira) realiza um “cabeceo” (leve inclinação da cabeça), que o outro pode aceitar, respondendo com o mesmo movimento, ou não. Ou seja, tem o direito de ir ao encontro do companheiro, mas também tem o direito de recusar
Tem horas que podemos recusar uma conversa. Assim como devemos respeitar o direito do outro de fazer o mesmo. Pode não ser o momento adequado. Podemos não estar prontos (falta informação) ou enfrentarmos barreiras internas (emocionais principalmente). neste caso, vale a pena se posicionar (sempre, nunca ignorar o outro), explicando os motivos
A aproximação
Os parceiros se aproximam, fazendo contato visual
A comunicação não se inicia no momento que os indivíduos começam a falar. A comunicação é um processo ininterrupto. Tudo que que acontece antes da fala em si vai afetar o resultado da interação. Um atraso, por exemplo
Antes da interação planejamos, revisamos, analisamos. O mesmo acontece nesses segundos que os parceiros vão ao encontro do outro
O abraço
O abraço é o momento do encontro, do toque, da entrega. Acontece aos poucos, e é um momento sagrado, quase divino
O mesmo acontece ao encontrar a outra pessoa, antes de começar a dialogar. A conexão deve preceder as palavras. Receber o outro de mente e coração abertos. Esquecer tudo que possa distrair e decidir (sim, é uma decisão consciente), se entregar à conversa por inteiro
O início
Antes de dar o primeiro passo os dançarinos devem estar nos seus eixos, e isto é fundamental no decorrer da dança toda. Eles devem sentir o corpo do outro, mas sem se apoiar nele. Força no abdome, uma postura que garanta o equilíbrio mesmo nos passos mais ousados
Entrega total na comunicação não significa deixar as nossas crenças e valores de lado. Entrega significa, “Estou disposto a te escutar e tentar compreender tudo aquilo que você tem a me dizer, mas sem sacrificar os meus princípios, aquilo que norteia a minha vida. Mas também estou disposto a mudar o meu jeito de ver as coisas, se eu perceber que sua percepção faz sentido. Sou humilde suficiente para isso. Mas não sou obrigado a concordar com você. Nem você comigo”
A dança
Como mencionei, existem códigos a serem seguidos: os dançarinos devem rodar na pista no sentido anti-horário, se houver um atropelamento, pede-se desculpas, ninguém anda para trás, ninguém para. O homem não pode avançar de costas. E, o mais importante, durante a dança não se corrige nem se ensina a dançar
O mesmo deve acontecer quando interagimos com o outro. Devemos estar bem cientes do rumo da conversa. Se houver qualquer tipo de conflito, precisa ser resolvido. Ninguém desiste, a não ser de comum acordo. E ninguém diz ao outro como deve se comunicar no momento da conversa
O tango é uma dança imprevisível, não existe uma base como em outros ritmos. Tudo pode acontecer, inclusive no decorrer de uma única música. Os dançarinos devem estar atentos não só à melodia, mas à letra, pois ela estabelece um clima, uma tensão, uma emoção. E as dança deve acompanhar isto.
O mesmo acontece ao se comunicar com o outro. Devemos estar atentos o tempo todo, ao outro e ao contexto, por isso a importância de evitar distrações físicas ou mentais. Muitas coisas, às vezes quase imperceptíveis, podem acontecer. Uma palavra, um gesto, uma expressão, um tom de voz. E se formos capazes de perceber isto, com certeza a outra pessoa sentirá que você valoriza o que ela diz e sente
O final
Acaba a dança, mas não a magia. Os parceiros podem continuar dançando juntos, ou não. E com certeza o efeito desse abraço, dessa entrega, dessa conexão de corpos e almas, os acompanhará bem depois do final da música
Assim é a nossa vida, a conversa acaba, nos afastamos do outro, mas continuamos juntos. A comunicação não acaba, ela se abandona, assim como fazem os artistas ao pintar suas telas. Não existe uma obra finalizada, sempre podemos dar mais uma pincelada
La vida es un tango, pero hay que saber bailarlo.