Fábio Adiron
O apóstolo Paulo, em um dos seus textos mais conhecidos (ainda que não exatamente por esse trecho) dizia que “ Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino e pensava como menino. Quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino.”[1]
Eu, quando era menino aprendi a ler em cartilhas ilustradas, peguei gosto pela leitura em livros cheios de gravuras e imagens.
Quando era menino a escola nos obrigava a decorar datas, locais, fórmulas e tabelas, mesmo que não soubéssemos muito bem para o que isso iria servir. Bons alunos se destacavam pela capacidade de memorizar, não pelo raciocínio.
Não esqueço de uma Dona Leda, professora de ciências do Reynaldo Porchat , que nos fez decorar os nomes de todos os ossos e depois todos os músculos do corpo humano, para algumas poucas décadas depois muitos mudarem de nome. O que eu faço agora com a rótula e o perônio? Que triste fim levou o cúbito?
Foi somente no ensino médio, graças a um brilhante professor de história chamado Cacá, que alguém foi me ensinar a relacionar fatos para chegar a conclusões. Foram três anos de excelente treinamento em pensamento crítico e abstração que me foram úteis no ensino superior e para toda a vida.
O que não significava que na mesma escola muito ainda eram adeptos dos recursos mnemônicos, a ponto de termos um professor de literatura que sabia de cór Os Lusíadas de Camões, não apenas a abertura, a linda Inês posta em sossego[2] ou o gigante Adamastor, mas os 10 cantos, 1102 estrofes e os 8816 versos.
Pouco, ou nada, mudou
Quem acreditou que a educação se modernizaria com o tempo, se enganou. Meus filhos foram educados com modelos muito parecidos e, com raras exceções de professores fora da curva, a escola continuou privilegiando a memória ao raciocínio.
Raio forte caiu ontem fazendo grande estrago é fórmula de biologia para decorar reino, filo, classe, ordem família, gênero e espécie.
Vovô, vovó, dois anões numa pirâmide sensual, para saber Torricelli:
V^2 = Vo^2 + 2 Ds. E, mesmo sendo discriminatório com as pessoas com nanismo, não garante que a pessoa faça a menor ideia do uso da fórmula.
Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. Seno A+B = senA.cosB + senB.cosA. Essa nem eu consigo imaginar como uma coisa pode levar à outra.[3]
Um mundo infantil
Não chega a ser surpreendente que o mundo dos negócios esteja infestado de recursos que apelam para a memória ao invés de privilegiar o raciocínio. Talvez porque, como muitos não consigam entender de outra forma, é preciso desenhar.
Somo inundados de pirâmides, cones que, de certa forma, são pirâmides esféricas, funis – que nada mais são que cones invertidos, círculos, quadrantes. E as figuras nunca são mais complexas que isso, ou alguém já ouviu falar do eneágono de Schmoming[4] ou de algum modelo de negócios baseado no anel de Moebius?[5]
Quando não são figurinhas são os famigerados acrônimos: VUCA, BANI[6], FIFO, SWOT, 4 pês, os 5 esses…
Ainda estou esperando (com medo de que já exista algum) coisas do gênero do “raio forte…” para definir os estilos de liderança ou uma musiquinha no melhor gênero jingle com um roteiro para programar em Python.
Será que o disco rígido das pessoas com seus 86 bilhões de neurônios[7] não é capaz de ser um pouco mais sofisticado do que isso?
A tal da memória
Inteligência tem sido definida ao longo da história de muitas formas, tais como a capacidade de alguém para lógica, abstração, memorização, compreensão, comunicação, aprendizado, controle emocional, planejamento e resolução de problemas.
A memória é apenas um desses fatores e, particularmente, não um dos que diferencia a inteligência humana dos demais animais (com maior ou menor capacidade de armazenamento, com exceção de corais e águas-vivas, que não tem cérebro, todos têm).
Não é à toa que pessoas com vasto conhecimento armazenado sejam muitas vezes consideradas inteligentes, mesmo que tenham uma capacidade de processamento limitado e não consigam fazer pontes entre conhecimentos de campos lógicos diferentes.
Descartes, fundador da lógica moderna, não acreditava no valor das memórias, entendendo que elas eram geradas pelos sentidos e não pelo raciocínio. Sentio ergo non sum, talvez fosse uma afirmação possível da parte dele. Os sentidos que pareciam verdadeiros o teriam enganado, não eram confiáveis e, portanto, ruins.[8]
Já em Bertrand Russell a memória gera grandes questionamentos a respeito dos conteúdos mentais: como são formados? Qual seu grau de fidelidade em relação à realidade experimentada, como e quanto da subjetividade interfere na formação e percepção das experiências e assim por diante.[9]
Muito além da memória
Isso não quer dizer que a memória deva ser descartada. Em parte, é a partir dela que vamos usar os nossos demais recursos mentais.
O erro está em atribuir à memória (e, especialmente, à memorização de conteúdo) a função primordial da inteligência.
Capacidade de abstração, planejamento estruturado e lógica, até prova em contrário, são essencialmente humanos, mas como vemos, é mais fácil um veículo robô pousar em Marte do que investirmos no desenvolvimento dessas competências. Afinal é uma questão de perserverança.
Até porque nem todos sabem ensinar essas competências.
Na primeira da faculdade em que estudou meu filho, disseram que ele estava tendo dificuldade de abstração. Numa sala com três professores-doutores (um deles o diretor da faculdade) eu perguntei: e como se ensina abstração?
Se eu tivesse perguntado o sequenciamento atômico que gerou o universo talvez não tivesse causado tanta perplexidade. Depois de uns minutos de silêncio, um deles teve a coragem de dizer: não sei.
Minha vontade foi a de procurar o professor Cacá (ou outros que encontrei pela vida) e pedir que ele fosse dar umas aulinhas naquele lugar.
Caminhos a desbravar
Reconheço que o processo é trabalhoso e lento[10], mas não vejo outro caminho a não ser levar o raciocínio das pessoas da fase infantil (figuras, acrônimos e versinhos) para a fase adulta (lógica, abstração, planejamento estruturado, resolução de problemas).
São competências ensináveis por exercício, repetição, acertos e erros. Fatores que raramente são palatáveis nos nossos modelos (educacionais ou não) de desenvolvimento humano.
Quando encontramos modelos diferenciados (Montessori, Waldorf , Escola da Ponte, entre outras) descobrimos que eles não são exatamente os mais populares. [11]
Queremos respostas rápidas. Queremos soluções fáceis. Foco nos resultados.
O filósofo Clóvis de Barros Filho detona o fato de que o valor de algo se limita a seus resultados, o consequencialismo ético, uma das vertentes do utilitarismo, parte do princípio de que, se os fins são alcançados, pouco importam os meios. [12]
Esse modelo que seguimos pode até atingir seus resultados, especialmente a curto prazo, mas são resultados pífios comparados aos que seriam alcançados por pessoas ensinadas a pensar, não a repetir como papagaios os modelinhos medíocres e pré-formatados.
Segundo Simon Sinek[13] é a diferença entre um jogo finito, que é uma situação artificial e o jogo infinito[14] – a realidade em que vivemos. Nos negócios, na política e na vida, as regras estão sempre mudando, podem entrar jogadores que nem sequer conhecemos e a partida nunca acaba. Mais importante do que as vitórias e derrotas, é sobreviver no jogo
A maioria dos gestores não percebem essa diferença. Lideram organizações com a mentalidade de quem está disputando um jogo finito. Pensam a curto prazo. Acham que o jogo termina com o fechamento do quarter, querem lucros e depressa, para receber seus bônus.
Quem pensa dessa forma acaba ficando para trás: na inovação, na moral e na performance.
Nosso modelo de futuro será balizado por essa escolha, formar humanos com capacidade de raciocinar ou deformar humanos para a banalização generalizada.
[1] I Coríntios 13:11. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada.
[2] Versos que meu pai, sarcasticamente completava dizendo: “pelos montes rolava entre as ervinhas, o derradeiro dente que ainda tinhas..”
[3] Obrigado Letícia Ribeiro pela colaboração
[4] Não se dê ao trabalho de procurar, eu acabei de inventá-lo
[5] Pode procurar, o anel existe, modelos de negócios baseados nele não.
[6] Eu já cheguei a sugerir a criação do acrônimo MICO, mas ninguém quis ficar com ele
[7] Números em revisão, revista FAPESP 192. Fevereiro de 2012
[8] DAMASIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras. 1996 – o erro enfatizado por Damasio não se refere à questão da memória aqui citada, mas à exclusão das emoções no pensamento cartesiano.
[9] RUSSELL, Bertrand. Conferência IX. Memória. In: A análise da Mente. Rio de Janeiro: Zahar. 1976.
[10] Nâo confundir esse lento com o pensamento lento definido pelo Kahneman
[11] Conclusão a partir de um comentário do Ricardo Minari
[12] Recomendo que assistam a fala em https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=SUr9rcZulWE
[13] Recomendação de leitura do Ricardo Minari
[14] SINEK, Simon. O jogo infinito. Sextante. Rio de Janeiro. 2020